Sunday, March 28, 2010

Memórias de um tempo indefinido III

No fundo do terreno há um muro. Muro esse que sempre foi interdito. Supostamente não podíamos chegar perto desse muro, com ameaça de levarmos um bom puxão de orelhas da tia se descobrisse. Logicamente passávamos grandes tardes de volta dele. Quando éramos pequenos costumávamos brincar que as pesadas pedras escondiam um mundo maravilhoso, cheio de personagens fantásticas, dragões e princesas, feiticeiros e mouras encantadas. Ou que a aglomeração de rocha provinha de um antigo monumento megalítico, cromeleque de uma velha civilização. Um autêntico Stonehenge à mão de semear.
Assim, todos os anos inventávamos cerimónias de adoração e ensaiávamos tentativas de comunicar com qualquer ser que do outro lado se quisesse dar a conhecer. Era um muro vivo: coberto de musgo, líquens e cogumelos, só agravava a aura de mistério. Como é que as plantas sobreviviam sem estar no chão? Se todos os anos víamos o tio a tratar dos campos enquanto dizia com orgulho que “a terra é a força motriz por detrás de tudo” e é portanto o que faz crescer as coisas? Só com uma poderosa magia seria possível tal façanha.
Para apaziguar qualquer poder que controlasse aquela entrada para o mundo irreal, fazíamos oferendas. Não podendo comunicar à tia para que é que queríamos as coisas, tínhamos de arranjar alternativas. No terreno do vizinho, um pouco mais à frente, há um imenso pomar. Várias vezes, galgámos a cerca para apanhar belas maçãs verdes; tão verdes e perfeitas que até pareciam encomendadas de propósito para “apresentarmos ao Grande e Místico Muro”.
Antigo, solene, com poderosas pedras cinzentas, grandes demais a nossos olhos para terem sido colocadas alí por meras mãos humanas, o Grande e Místico Muro era também magnânimo e permitia-nos partilhar das dádivas que lá colocávamos. Em nenhuma vez, em outro lado, provei maçãs tão frescas e doces.
Nunca de lá veio ninguém, nem tivemos coragem de transpor o alto muro, com medo de não voltar. O muro não tinha sido feito para deixar os dois lados comunicar, quem éramos nós para o contrariar? Ainda assim, providenciou-nos ingredientes para tantas brincadeiras diferentes, que penso que não será, de todo, um muro vulgar. A sua magia fez crescer a nossa imaginação, e deu asas aos nossos sonhos de aventura.
Tantos anos passados, o muro ainda conserva o seu quê de fantasia e sumptuosidade. Um mistério nunca revelado. Um dia destes resolvi perguntar à tia afinal porque é que não nos podíamos aproximar dele. Um pouco a medo. Não sei se de quebrar o romance que paira sobre ele, num qualquer facto mundano. Ou de descobrir que as nossas suspeitas não eram afinal infundadas.
A conclusão surpreendeu-me e fez-me sorrir com cumplicidade escondida. A tia afinal já sabia que se nos proibísse, não íamos fazer mais nada senão ficar obcecados com o dito muro. E assim, dizia ela, conseguia arranjar maneira de nos afastar das árvores do vizinho. Porque essas sim, costumavam ser vítimas de feia ladroagem e seres endiabrados.
Talvez daqui a uns anos lhe conte. O problema é que as maçãs continuam a ser tão saborosas como da primeira vez...

0 Alvitres:

Post a Comment

<< Home