Sunday, September 10, 2006

"Poder-se-ia agora falar da manhã, descendente da noite...
Mas não, ser-me-á sempre preferível falar dela tal como a vejo, filha de ninguém, mãe da tarde, progenitora do dia, fim de nada, começo de tudo. É sob a sua luz que se encarna fielmente o estado da alma, não só na tristeza como na felicidade, extremosa em ambos os sentidos. O encanto nocturno, ao contrário, poderá causar o efeito insidioso de nos fazer sentir heróis da nossa própria tristeza, vítimas eleitas do universo de uma dor inelutável que só eleva. A tristeza remetendo-nos para uma glória espelhada onde complacentemente procuramos admirar-nos nos traços da amargura. O ambiente apaziguador da noite, se por um lado inebria, por outro parece adensar ainda mais o abismo que o separa da implacável manhã, que logo chegará tão certo quanto a vida. E chegado enfim o momento já nada se fantasia, a própria fuga parece estampar-se com uma violência descabida; cai de uma assentada a angústia, seca de tanto desencanto, desmascarada por uma claridade delatora com aparências de inimizade, mas tão sincera quanto o mais casto dos afectos.
Só quem realmente já conheceu esta versão da madrugada é que saberá reconhecer, um dia mais tarde, a verdadeira beleza de um amanhecer."

0 Alvitres:

Post a Comment

<< Home