Friday, February 26, 2010

Memórias de um tempo indefinido II

Não tinha sido uma boa ideia ir ao cinema. Era a conclusão que passava pela minha cabeça, às cinco da madrugada, com o galo prestes a cantar e eu ainda sem ter dormido. E depois de tudo isto, a noite. Sinistra no seu aparente silêncio, que se revela afinal recheado dos mais variados murmúrios.
A casa a ranger da madeira que se ajusta em perpétuo movimento. Como um antigo e terrífico gigante, que num sono profundo busca a respiração bem no seu íntimo. As árvores lá fora, parecem ocultar vultos. Sinto-me observada. Num esforço de tentar ignorar o que se passa à minha volta e que me deixa tão inquieta, escondo-me debaixo dos lençóis. Escuro. Apertado. Abafado. Falta-me o ar. De repente, um arrepio. De frio não será; apesar do vento que se faz ouvir lá fora, é uma quente noite de verão. O ar que circula é cálido, húmido. Parece a respiração do próprio gigante-casa. O arrepio tem outras razões.
A medo, volto a espreitar a cabeça de fora; o calor não me permite continuar no meu “abrigo” e sinto-o a fechar-se sobre mim. Estonteante e arrasador, acaba por intensificar o sentimento de estar encurralada nesta casa que à minha volta se contrai. Como tentativa de fuga, concentro-me na janela. O vento assobia nas portadas abertas.
O luar que tão útil foi na primeira noite para me abrir a visão do quarto, matiza toda a noite de palidez. É uma luz branca, fantasmagórica, que reveste a mobília, as paredes, o tapete, a cama... estremeço ao pensar nos seus efeitos sobre a minha cara. Pelo vidro, vejo sombras que se contorcem ao sabor do vento. Sombras vivas que avançam sobre mim e sobre a casa. Penso se afinal estarei mais segura fora deste espaço que me aperta, se a alternativa é enfrentar o que quer que se movimenta no exterior.
Subitamente, a minha visão periférica capta uma agitação perto das almofadas no tapete. Será que a antiga poltrona de baloioço, se mexeu por vontade própria? As outras opções não serão mais favoráveis, se eu estou no fim de contas, sozinha no quarto. Não. A luz que vem da Lua é que brinca com as pequenas partículas de pó, rodopiando no ar, numa dança hipnotizante e de certo modo, serena.
Serve para acalmar um pouco o semi-pânico paralisante que se instalou em mim, mas não me tira o peso de cima do coração. O meu cérebro protesta: deixa-te de parvoíces e vai dormir. É tudo resultado da sessão de cinema, a casa continua a ser a mesma, não está ninguém lá fora, não há monstros debaixo da cama, e mais nada. O lado racional a entrar em acção, apesar das insistências da minha imaginação hiperactiva que constrói todo este mundo que me assusta. Que resolveu começar a actuar apenas por sugestão, já que o filme não se prestava a grande supense ou sustos inesperados.
Dividida entre a razão e a emoção, fito o tecto. Tento não imaginar o alçapão a abrir-se, revelando qualquer coisa funesta, que escorregaria pelo caracol da escada, deslizando, diminuindo a distância que nos separa, movendo-se como uma sombra, pronta a atacar... Não. Chega. Infelizmente nunca preciso de nada que me assuste, consigo agoirar-me a mim própria.
O resto da casa dorme a sono solto e eu, ali. A pouco e pouco a recusar-me o descanso, a afastar o tão merecido repouso depois de mais um dia de grande actividade. E sem proveito de nenhuma espécie, antes pelo contrário, inquietando-me a cada momento.
Continuo a cismar nesta e noutras coisas enquanto estudo o padrão dos veios da madeira nas asnas que suportam o telhado. Acaba por se revelar uma actividade bastante apaziguadora e relaxante, e lentamente sinto o sono a acercar-se das poucas sinapses que ainda continuam teimosamente a disparar.
De súbito, o cantar do galo. O amanhecer apanha-me desprevenida, enquanto a luz substitui a escuridão, e a casa se transforma para o início de um novo dia. Os raios de sol espreitam entre os caixilhos das janelas, dotando o espaço de uma luz dourada e acolhedora que sobe pela parede. Corando a face pálida deixada pelo luar.
Mais um início, uma promessa de algo novo. Estou segura. Em paz. E assim, me deixo finalmente seduzir pelo sono. As pálpebras pesam e como última acção ainda presa à consciência, tento comunicar telepaticamente à minha tia que não me venha acordar pelo menos antes da hora do almoço.

Friday, February 19, 2010

Pequenina outra vez

Friday, February 12, 2010

Memórias de um tempo indefinido

A oportunidade era de aproveitar, sessões de cinema eram raras ali, e acabou por ser o programa escolhido para me voltar a encontrar com as primas. Enquanto os trailers dos filmes seguintes passavam, enterrámo-nos nas grandes poltronas de veludo puído. O cine-teatro, à época, tinha sido construído com todos os requintes possíveis e imagináveis. O responsável pela ambiciosa empreitada, um filho da vila que tinha feito fortuna no estrangeiro, quis que tudo fosse feito com a memória dos melhores teatros de Paris e Londres.
As cadeiras, de primoroso veludo vermelho, bem forradas e com pormenores em madeira escura, estavam brilhantes na noite de abertura. A sala não era grande, mas era rica e a estreia teve honras de realeza. Os pesados reposteiros convidavam a entrar naquele mundo tão diferente, de ilusão e luxo. As fofas carpetes, tinham sido colocadas quase na véspera, para serem estreadas apenas pelas altas individualidades da vila. O cartaz, para uma tão importante noite, era uma peça simples, revista à portuguesa, popularucha, organizada pelo grupo de teatro da paróquia. A atmosfera, essa, era de festa.
Nunca se tinha visto tanto janotismo, nem mesmo na procissão da Semana Santa. Os “solipédes” chegaram na noite de abertura, com toda a pompa e circunstância. Chamavam-lhes assim, por serem aqueles que, para lazer, podiam ter o seu próprio cavalo (solípede). O povo, ficou a ver aquele desfile, antes de entrar e ocupar os lugares mais baratos. Era como os Óscares e a sua passadeira vermelha. A tia costumava contar esse “espectáculo” que tinha visto em pequena muitas vezes. Como todos estavam garbosos: estrelas de cinema por uma noite; e como o Menino Francisco lhe tinha sorrido e atirado um beijo sem a mãe dela ver.
Mesmo já desgastado e usado, não é difícil imaginar tão grande festa, quando passo pelos tecidos coçados e queimados pela luz, do magnífico cine-teatro. Lembranças de plumas e veludos, de lantejoulas e franjas ecoam pelas salas. O parapeito do balcão sente ainda a leveza das luvas que por ele passaram, e o bengaleiro, o peso das peles.
No meio da memória de tanto luxo e belas recordações, em exibição estava um filme de terror. Um “gore” da pior espécie com membros decepados em todas as direcções, cabeças cortadas e sangue por todo o lado. Era o que estava programado, e a ida ao cinema tinha sido escolhida sem sabermos o que ia passar. À saída, enquanto pensávamos na sabedoria que tínhamos demonstrado em querer ver o filme de qualquer das maneiras, encolhemo-nos umas contra as outras, com medo do que poderia estar à espreita por trás de portas entreabertas.
A história rica do teatro só faz com este pareça agora o palco perfeito para assombrações de antigos actores, segredos embebidos nas carpetes e terrores escondidos lá em baixo, nos camarins. Quando uma criança que nem devia ter estado a ver aquele filme - e que aliás, por incrível que pareça, passou o tempo todo a rir - , salta do meio dos reposteiros para nos pregar um susto, decidimos acompanhar-nos às casas umas das outras. Assim, a nossa, que não seria a mais longe, fica para último por sermos o grupo maior. Depois de lentas e penosas deambulações por campos na penumbra, chegamos a casa.
Quando atravessamos finalmente a ombreira e o sentimento de segurança se espalha, um mocho solitário pia. Três vezes, como um sinistro vaticínio, desassossegando-nos o espírito.